sábado, 30 de novembro de 2013

Já faz tempo que resolvi renunciar à aversão aos clichês e é justamente por isso que me permito começar esse post com um excerto que, conforme me mostra o Google, diz exatamente assim: "A arte existe para que a verdade não nos destrua", trecho este, retirado de algum livro de Friedrich Nietzsche, um dos mestres da capacidade de dizer tanto com tão pouco.
Enfim, buscando perder esse vício em introduções desnecessárias e quase sempre sem sentido, vou direito ao ponto: vim aqui pra falar dos pequenos prazeres.
O primeiro pequeno prazer do qual me lembro tinha a ver com os domingos na casa da minha vó, que tinha cheiro de pão. Apesar dos muitos anos que já se passaram, sempre me vejo no quarto de visitas, quando o sol já ia se pôr e a luz batia bem na janela e a gente conseguia ver as partículas de poeira subindo e descendo, parecendo pequenas estrelas. Esse é o primeiro prazer do qual me lembro: me perder em fantasias astronautas no meio das partículas de poeira, nos fins de tarde de domingo, na casa que tinha cheiro de pão e cor de canela.
O tempo passou e o segundo pequeno prazer que vou citar é reminiscência do meu primeiro grande amor (aliás, graças à essa minha memória torpe, foi tudo o que sobrou dele). Quando eu tinha umas seis primaveras de vida, arrumei um namoradinho. Provavelmente seduzido pela minha precoce sem-noçãozice, o pequeno Juninho me pediu em namoro. Nessa época, morava na vila militar, na casa que ficava bem em frente ao campinho de areia e tinha a vista mais bonita de Uberlândia. Juninho morava na esquina.
Nas tardes em que nos era permitido sair, Juninho costumava me encontrar no campinho de areia. Era ali que a gente dava as mãos e vez em nunca arriscávamos até um beijinho. Na hora de ir embora, sempre seguíamos um ritual: seguindo a cerca que rondava o campinho e era cheia daqueles matos que dão florzinhas eu o acompanhava até o fim da minha rua. Quando era a hora de dar tchau, Juninho me dava uma florzinha e me perguntava "você me ama?" e eu, sem titubear, respondia que sim. Com uma flor na mão, dizer que amava sim o pequeno Júnior: este sim era um grande pequeno prazer.
A vida enfim passou e meus pequenos prazeres já não são tão nobres, diria até que são apenas pequenos luxos aos quais me presto vezenquando. Um filme de tirar o fôlego, alguns pores-do-sol, um café diferente, apontadores de ferro, praças podadas, reencontrar amigos, silêncios confortáveis... E também esse pequeno prazer que tem se mostrado cada vez maior: os monólogos dramáticos.


Na sexta-feira tive a honra de assistir a peça "Estamira - Beira do Mundo", no auditório do SESC Bauru.
Ano passado um professor de filosofia e história me emprestou alguns dvds. Dentre eles estava "Estamira", documentário sobre uma senhora que sofria de deficiência mental e que vivia e trabalhava no lixão do Jardim Gramacho, até então, o maior aterro sanitário do mundo, que foi tema também da bela obra de Vik Muniz, retratada em um documentário intitulado 'Lixo Extraordinário', que eu também vi lá pelo Amazonas.
Foi uma surpresa quando a data em que a peça sobre Estamira seria exibida aqui em Bauru coincidiria com o período de tempo em que vim ficar com meus pais. "Estamira - Beira do Mundo" é uma peça do gênero monólogo dramático, baseada no filme de Marcos Prado, dirigida por Beatriz Sayad e estrelada (estrelada soa meio ridículo?) por Dani Barros. 


A temática da peça são os distúrbios psíquicos. Mas essa temática, tão frágil, não é levada de uma maneira concreta e regular, o que deixa sempre um ar de certa imparcialidade, de terreno incerto. Estamira é retratada como uma louca lúcida, uma louca sobretudo humana e real. É um retrato. Um retrato louco e lindo, cheio de delicadas imperfeições.
Não é uma peça muito fácil de ser compreendida. Muitas vezes o que Estamira fala é ininteligível e a linha que separa Dani de Estamira é, em certos momentos, inexistente, embora a mensagem dada seja extremamente clara e sã.
Você não entende "Estamira - Beira do Mundo" como se entenderia uma equação ou um teorema. Entende-se Estamira como se entende Leminski e Drummond: de uma maneira muito mais ampla e profunda e completa.
A atuação é impecável. Dani Barros se vira e revira em Estamira, dona de uma lucidez incompreensível, mas digna. Em vários momentos Estamira se perde em seus devaneios. Fica em silêncio no meio das frases, olhando pro todo, olhando pro nada. E de repente solta algo belo, profundo: "tu te tornas eternamente responsável pelo lixo que cultivas", "nas escolas vocês não aprendem, vocês só copeiam" (sic). Mas pela falta de nexo Estamira está perdoada. Afinal, quantas incoerências temos que dizer e pensar para que algo infimamente bonito ou aproveitável surja?
No final da peça, quando as luzes do auditório se acenderam e Dani fez o agradecimento não pude deixar de vê-la nua. E digo nua porque não consigo descrever de uma maneira mais comedida. Completamente nua. Talvez mais nua do que se estivesse realmente sem roupas.
Foi estranho ver uma pessoa-personagem que se descabela e grita e assume depressões e traumas, ali, na luz, como um ser humano qualquer, banal, carne-e-osso, destituída "dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros". Era de novo apenas Dani Barros. Mas, talvez pela proximidade dos fatos, ainda se enxergavam traços da Dani-Estamira, da Dani-Gorila, da Carta-da-Dani. E tais traços assustavam. Eram uma presença de repente estranha, de repente esdrúxula, que não cabiam ali naquela sala cheia de gente, extremamente clara, extremamente real. E não pude deixar de sentir que ela havia deixado um pedaço de si com cada um ali.
Pergunto-me por que ela haveria de se exteriorizar, de se expor tanto. De onde vem essa necessidade da gente de ser desvendado, desnudado, simplificado? Necessidade essa que inclusive tenho em mim. Afinal, o que mais me traria aqui, nesse blog meio-secreto, senão isso?


Quando cheguei em casa fui procurar saber mais sobre a peça. Li algumas resenhas e percebi que foi consenso entre a maioria dos resenhistas a beleza com que a peça trata sobre a loucura, as deficiências mentais, etc, etc. Mas não foi isso o que realmente ficou para mim.
Não, realmente não estou apta a falar da veracidade da loucura de Estamira ou dos tiques estranhos que de vez em quando permeavam a peça. A atuação de Dani Barros me anestesiou de tudo. Vê-la ali se entregando daquela maneira surreal me fez não conseguir absorver quase mais nada. Eu era toda admiração e comoção. Qualquer coisa que ela fizesse, desde que daquela maneira que me fez acreditar que ela estava dando tudo de si, eu acharia magnífico.

- Publicado anteriormente aqui

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